Autor: Carol Grilo

  • Sem celular

    Sem celular

    Numa manhã de terça meu celular travou.

    Entre duas tentativas de reiniciar o sistema, ele declarou cansaço e levantou a bandeira branca. Jamais voltaria a trabalhar.

    Nunca havia acontecido isso comigo, desde meu primeiro modelo: um amarelinho transparente da Gradiente, enorme para os padrões atuais, mas que me bastava funcionando como telefone e para receber mensagens SMS.

    Ultimamente, tinha começado a negociar comigo mesma a diminuição do tempo de tela. Principalmente o uso de aplicativos como o Instagram. Uso profissionalmente, mas poderia diminuir ainda mais meu tempo de rolagem entre fotos desinteressantes e propagandas menos ainda.

    De modo compulsório, tive que largar tudo de vez.

    Sabia que minha comunicação continuaria através do whatsapp na web ou poderia continuar espiando e postando coisas nas redes sociais através do computador, até decidir pelo novo modelo de celular e esperar pela sua chegada. Tirando isso, o que mais me faria falta é a câmera, a música e o banco. Pensei até em carregar comigo a câmera reflex, como anos atrás, mas preferi não fotografar e aproveitar os acontecimentos da vida no momento presente.

    A música no carro voltou a ser o rádio. Gosto da Antena 1 e da rádio Senado. Nas minhas aulas, o silêncio e as conversas embalam, mas se algum aluno quiser transmitir a música, que fique à vontade.

    Pix e transferência, nem pensar! Não dá pra ler o QR code para concluir transações sem um celular. Ou seja, não consegui comprar outro aparelho via pix sem a ajuda de alguém, o que também me obrigou a voltar depois de anos a uma agência bancária para fazer uma simples transferência.

    Comecei a concluir que nada estava perdido por não carregar um celular na bolsa. Minha vida simplesmente continuou: passei a ler ainda mais, fui ao cinema, continuei dando as minhas aulas, escrevi um projeto, fui a abertura de exposições, encontrei amigos, continuei trabalhando e criando, aproveitei minhas gatas, dormi melhor e tive sonhos interessantes.

    Lembrei do Doutor Drázio Varella falando que o adicto em crack perde o vício em poucos dias, quando encarcerado. (onde o tráfico não permite essa droga). A verdade é que nosso vício em celular se esvai em poucas horas, basta não tê-lo na mão.

    A vida real se sobrepõe com todas as suas forças e só nos resta viver!

  • Você está sozinha

    Você está sozinha

    Há dias, a angústia aqui dentro é resultado das notícias sobre a brasileira que viajava pela Indonésia e caiu na montanha de um vulcão fazendo uma trilha.

    Nas noites seguidas, meus sonhos se misturavam com essa tristeza e as outras tristezas no mundo.

    Ficava aflita ao ler notícias em que o resgate não acontecia, a família não ia ao seu encontro e que cada minuto nas montanhas, sem água, sem comida e fazendo muito frio, contava.

    A cada dia, aqui dentro de mim, era confirmação de menos chance de vida.

    As trilhas com turistas continuavam acontecendo, mesmo sabendo que havia uma pessoa a ser resgatada nas fendas do vulcão.

    A localização onde ela havia caído foi dada através de um drone de outro turista e não de pessoas trabalhando na sua busca.

    As autoridades da Indonésia não se moviam. O Itamaraty não se movia. Assim as notícias chegavam pra mim.

    Muitas perguntas rondavam meus pensamentos:

    Por que a deixavam sozinha? Por que sua vida não era prioridade?

    Por que o guia a abandonou nas montanhas?

    A verdade é que eu já conhecia essas respostas.

    A todos que me perguntam sobre a obra “Você está sozinha”, que fiz em 2024, acho que não preciso mais explicar.

    Estamos todas sozinhas.

    “Você está sozinha” • bandeira e lambe-lambe

    Carol Grilo, 2024

  • Detetive particular

    Detetive particular

    O zelador toca a campainha de casa com um molho de chaves na mão:

    ” – O vizinho do duzentos-e-três disse que você está usando o hobby box dele. Aqui estão as chaves.”

    Meu cérebro deu voltas tentando entender o que ele estava dizendo.

    ” – Desde 2012?”. Ano em que havia mudado para esse apartamento.

    Decidi não interromper meu almoço e descer depois para resolver o mistério que não fazia o menor sentido.

    Acabei de comer tentando conectar as palavras absurdas ditas há pouco pra mim.

    Desde muito cedo na vida de uma mulher, nossa inteligência é colocada à prova. Já é quase automático ter que provar nosso entendimento pelas coisas e ficar com muita raiva de ser tratada como uma pessoa incapaz aos olhos de certos homens.

    Ao descer, tentei abrir meu cadeado com a chave que sempre serviu. Nada. O cadeado era outro e mais novo.

    Olhei para a porta do box ao lado e ela estava sem cadeado e marcada quinhentos-e-um a lápis.

    Lembrei do personagem Aranha que Bolinha França, da turma da Luluzinha, encarnava em algumas histórias.

    Eu mesma seria a Aranha desta vez, ávida em descobrir o “Seu Palhares” (o pai da Lulu era sempre o culpado) do pequeno prédio de classe média com nome metido em francês.

    Lá estava eu respirando fundo e tocando no apartamento de uma vizinha antipática, que eu teria que lidar nas primeiras horas da minha tarde. Horas em que eu devia estar trabalhando.

    Com um cachorro irritante pulando na minha perna, só consegui ouvir da moradora da cobertura que teria mais informações falando com a filha dela, moradora do segundo andar. Desci de novo.

    A segunda história narrada pra mim foi que o zelador arrombou todos os boxes para saber qual era qual e numerá-los com o apartamento correspondente. Tudo isso sem avisar nenhum morador.

    Usei mais um pouquinho a minha massa encefálica, ligando lé com cré – coisa que talvez seja um desafio para uma mulher de 46 anos, de acordo com alguns homens bem burros – e descobri o caso todo.

    Não sabendo qual era o box da moradora da cobertura, o genro dela e o zelador tiveram a “incrível” ideia de arrombar todos os boxes em busca do box de sua sogra.

    Não sei por quê decidiram que as minhas coisas pertenciam a outro morador, trocando as chaves dos cadeados arbitrariamente substituídos. Logo, eu não tinha mais acesso a elas.

    Desse modo, um homem resolveu seu problema: cometendo um crime. Algo muito mais custoso que simplesmente perguntar à síndica ou pedir que ela enviasse uma mensagem a todos os moradores usando o grupo de whatsapp do prédio.

    Decidi eu mesma comprar um cadeado novo, destroquei-os e resolvi o problema, por ora.

    Até a próxima reunião de condomínio que se inicia logo mais.

  • Vida

    Vida

    “A vida é uma máquina gigante, monstruosa e cheia de dentes que são acionados anarquicamente e percorrem o arco interno feito as teclas de uma máquina de escrever empurrando a tinta até o papel, só que ferozes e destrutivos, e nosso objetivo é passar o máximo de tempo possível andando tranquilamente dentro dessa máquina sem coincidir com as machadadas internas”.

    Não fossem as sílabas de sábadoMariana Salomão Carrara

    O imprevisto é imperativo quando se vive.

    Uma agenda toda organizada para a semana pode ser inutilizada em alguns minutos da segunda-feira. Uma mensagem cancela um compromisso. Outra mensagem adia aquele outro.

    A pessoa com quem você contava e amava profundamente, parte sem avisar. Vai embora pra sempre. Vai embora desta vida em alguns segundos.

    A campainha toca e tem alguém do outro lado da porta que vai falar algo que pode mudar tudo no dia de hoje.

    É preciso recalcular rotas, trajetos, vontades.

    É preciso ter jogo de cintura, plano B, cartas na manga.

    É preciso ter vida interior para preencher o vazio do imprevisto.

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  • Onírico

    Onírico

    Estava na seção dos livros em uma loja de departamentos.

    Avistou de longe a capa que trazia a foto de uma bailarina famosa. Pensou imediatamente no desejo da amiga em voltar a dançar e não hesitou em comprá-lo.

    Assim que o funcionário acabava de fazer um embrulho de presente bastante elaborado, naturalmente acordou. Estava na cama, em seu quarto. O sol já alto entrava pela janela. Escutava-se o canto dos pássaros. Os caramujos andavam em fila pelo gramado do jardim.

    Na mesma tarde encontrou sem querer a amiga do sonho:

    “Sonhei com você”.

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    * Remedios Varo – Encuentro, 1959 – Oil on canvas

  • Brigadeiro

    Brigadeiro

    Eu ainda era criança, mas uma criança quase pré-adolescente.

    Fui dormir na casa da amiga. Ela “apagou” cedo e eu, sem sono, fiquei lendo algum gibi até que seus pais chegaram tarde da festa.

    Nos trouxeram dois brigadeiros. Comi um e guardei o outro pra ela comer ao acordar no outro dia. A mãe achou minha atitude nobríssima. Mas a verdade é que pra mim não agiria de outro jeito. Nada mais justo que guardar o dela.

    Mesmo sendo aquela melhor amiga que foi muito malvada comigo. Nunca perdeu a chance de mandar e me manipular desde muito cedo.

    Nos encontramos e reencontramos durante a vida.

    Andamos desencontradas.

    Mas ontem li no livro:

    “É sempre uma prova de amor guardar um doce”.

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  • Colageria

    Colageria

    Já é tradição. Quando não estou fazendo alguma oficina da colagista e amiga Pati Peccin, estou participando de algum encontro de colagens em sua casa.

    Há algumas semanas, passei uma tarde de sábado em mais uma edição desses encontros. Revi amigos e conheci outros em meio a recortes de revistas e boas conversas.

    De vez em quando deixo o bordado de lado no ateliê, para dar lugar às folhas de papel e revistas. Criar universos inimagináveis com imagens encontradas é bom demais!

    Dessa tarde, e pedaço da noite, renderam três criações que compartilho aqui.

  • Exposição na Elase

    Exposição na Elase

    Desde a infância sou sócia do Clube Elase por ser filha de um engenheiro eletricista que trabalhou e se aposentou pela Eletrosul.

    Ser dependente de um funcionário da empresa me dava a chance de ser automaticamente sócia do clube. Tenho boas lembranças de tardes com meus colegas de escola treinando para as olimpíadas nas quadras da Elase ou em alguma festinha de amigos.

    Mais tarde, o clube se emancipou e tornou-se independente da Eletrosul e aberto à comunidade. Foi quando, pela segunda vez e já adulta, me tornei sócia.

    Há mais de 15 anos frequento o clube todas as manhãs para praticar meus exercícios diários na academia ou na sala de yoga.

    Ali fiz muitos amigos por afinidade ou por convívio.

    Ano passado, a Elase inaugurou sua galeria de arte. De lá pra cá, algumas exposições já aconteceram.

    Para comemorar os 48 anos do clube, este ano houve uma convocatória entre os artistas associados para compor uma exposição coletiva, da qual eu e Ivan faremos parte no próximo dia 20 de maio, terça-feira, a partir das 19h.

    Minhas obras escolhidas para a mostra foram produzidas entre 2018 e 2024.

    Esta coletiva é composta por cinco artistas com trabalhos em diferentes técnicas: desenho, pintura, cerâmica, fotografia e bordado.

    Aguardo a sua visita!

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    Serviço

    Exposição dos artistas da Elase
    Abertura: 20 maio de 2025, terça-feira, às 19h

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    Visitação: 20 de maio a 5 de julho, de segunda a sexta-feira, das 10h às 19h. Sábado, das 9h às 12h
    Galeria do Clube Elase • Avenida César Seara, 560 – Florianópolis, SC.

  • ¿Mojito o daiquiri?

    ¿Mojito o daiquiri?

    Tenho um pouco de culpa ao falar que Cuba foi um dos países que mais gostei de visitar.

    Não sou ingênua e sei dos problemas profundos que o país e sua população vivem nesse momento por causa do embargo e também do próprio governo. Vi de perto a escassez de alimentos e remédios para a população.

    Mas nenhuma análise que eu fizer aqui vai dar conta de todas as contradições que formam essa ilha.

    Vim escrever hoje sobre o que fez eu me apaixonar por este lugar.

    Vez ou outra me pego relembrando momentos que lá vivi. A alegria das descobertas de cada canto de Havana. Sua arquitetura, seu povo, os passeios em suas ruas. Talvez seja o país mais seguro que já visitei.

    A vida passa devagar onde o capitalismo não se alastrou. Não somos bombardeados com placas, propagandas e produtos supérfluos. A vida corre de outra maneira e em outro tempo.

    As crianças ainda brincam na rua, sem celular. Os artistas de rua são graduados em arte na universidade pública.

    Existem os museus e as galerias de arte. Tem o cinema cubano e sua tradição de cartazes lindíssimos.

    No litoral, tem o azul turquesa do mar caribenho. Mesmo nos dias de céu cinza. E o céu de Trinidad, que me lembrou o de Minas.

    Cuba é um lugar onde a gente consegue “dar um passo atrás” no modo de viver. Cuba lembra a gente de como a vida pode ser mais simples, menos corrida e com menos coisas. Lembra também que algo está muito errado no jeito em que vivemos aqui.

    Tenho saudades dos dias em que a maior preocupação era escolher entre um mojito ou um daiquiri.

    Um pedaço do meu coração ficou pra sempre lá.

    E torço por dias melhores para os cubanos.

    ¡Viva cuba libre!

    Colagem feita por mim

  • Ciranda

    Ciranda

    Às vezes a gente pensa que a história que interessa é a de outra vida. Uma vida inventada.
    Engana-se quem pensa que se inventa sem colocar um pouquinho do que se é.
    Naquela noite, estavam todas sentadas no chão sobre algumas almofadas espalhadas ou diretamente sobre o tapete. Poucas luminárias deixavam o espaço acolhedor, à meia-luz.
    Uma roda de mulheres pode ser assustadora a alguns olhos. Menos a elas próprias.
    Como em outros tempos, sentadas em círculo, pareciam estar ao redor de uma fogueira imaginária. Ali criavam juntas uma nova personagem. Cada uma contribuindo com o que lhe alcançava: uma origem, um ofício, uma vontade. Essa personagem é feliz? Vive em liberdade? Gosta de dançar?
    Aos poucos, ela foi nascendo e ficando em pé. Ganhando vida própria.

    Aos poucos, também, algumas dessas mulheres foram se reconhecendo e se apegando ao novo ser que surgia.

    Conforme a vida nascia para essa personagem, a amizade e vínculo nascia entre essas mulheres.

    No final da noite, constatou-se: faltou um nome.

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    “Não basta dizer que é para isso que serve a ficção: para pôr as nossas coisas inconfessáveis nas almas de personagens inventados”.

    Miguel Esteves Cardoso