Ainda é comum achar um pelo fininho, preto ou branco, em algum lugar da casa.
Hoje foi no teclado do computador.
Tem hora que ele vem voando com o vento que entra pela janela. Já apareceu até na roupa da minha mãe, lá na casa dela.
Faz mais de quatro meses que você partiu. Algumas dezenas de faxinas depois e ainda existe parte de você que insiste em ficar aqui. Mesmo depois da vida andar tanto pra frente.
Às vezes parece que faz muito tempo. Às vezes parece que não.
O vazio já faz parte da casa. A gente se acostuma, não tem outro jeito.
Mas, no silêncio dos pensamentos, você ainda está aqui.
“Tanto o sono como o tédio são estados de inatividade. O sono é o ponto alto do relaxamento do corpo, enquanto o tédio é o ponto alto do relaxamento espiritual”.
Ele é o único elo entre o eu de hoje e o eu de quando ainda nem existia a internet.
Me lembro das horas da infância e juventude reclamando de não ter nada pra fazer. Esses momentos eram dádivas a que só dei valor mais tarde, ao passar horas diárias na frente de telas de variados tamanhos.
O que falta pra gente ser realmente feliz nos nossos tempos é um pouco de tédio, que eu associo com uma mente criativa. É preciso de um tempo para fermentar as ideias na cabeça e as informações interessantes que buscamos.
Não é preciso estar a par de tudo o que acontece com os nossos amigos (e inimigos) através das fotos e vídeos no Instagram. Essas informações irrelevantes “apodrecem” nosso cérebro. Não à toa o termo da vez é o brain rot.
Contra isso, tento catar os pequenos momentos de tédio. É um desafio diário, para o cérebro, estar numa fila sem olhar o celular, esperar um atendimento sem olhar o celular, esperar qualquer coisa SEM OLHAR A DROGA DO CELULAR.
Como dizia um cartaz da ilustradora Nastya Varlamova que vi numa exposição em Portugal: “Stop scrolling! Real life is calling”.
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Dicas de leitura
• Certa vez, na livraria, me chamou a atenção o título do livro infantil “Tédio das tardes sem fim“, de Gaël Faye e Hippolyte. Beleza no texto e nas ilustrações.
• “Vita contemplativa ou sobre a inatividade“, de Byung-Chul Han. Sobre buscar de volta a nossa capacidade de não fazer nada.
Aproveitei um feriado esticado para fugir da cidade mais uma vez.
Depois de horas de estrada asfaltada e uma hora de estrada de terra, cheguei ao refúgio escolhido. As primeiras “pessoas” que conheci foi a cadela Fauna e a criança Flora.
Lá estava eu, num chalé de frente prum lago com tilápias, que logo mais seriam saboreadas no primeiro almoço feito no local.
Dali pra frente minha missão era simples, porém nobre. Dormir, comer, ler e ficar em contato com a natureza. E, claro, deixar o celular bem longe disso tudo.
Dida e sua família nos recebeu maravilhosamente bem. Cozinhou todos os dias com capricho único, utilizando a matéria-prima que ela mesma plantou e colheu: arroz, feijão, milho crioulo, mandioca, rúcula. Sem contar nos pães e pizzas de fermentação natural, na geleia de morango e jabuticaba, iogurte, mel, bolos, doce de pera e chás. Tudo feito por ela.
Depois de algumas horas fui surpreendida pela carinhosa gata Íris, que fez companhia por toda a estadia.
Entre um passeio no campo e outro na trilha, as leituras que me acompanharam nesses dias preguiçosos foram o Caderno proibido, de Alba de Céspedes e De quatro, de Miranda July.
Gosto quando o tempo passa devagar, assim tenho como prestar atenção aos meus pensamentos e chegar a algumas conclusões e vontades na vida.
“Aprender a compreender as coisas mínimas que acontecem todos os dias talvez seja aprender a compreender realmente o significado mais recôndito da vida”. (Alba de Céspedes)
Trago comigo as boas lembranças desses dias no meio do mato.
Outro dia escrevi aqui sobre a minha série de colagens Indecifráveis, que criei com as práticas experimentais no grupo Impossibilidade de esgotamento, idealizado pela artista visual Kamilla Nunes.
A boa notícia é que nesse 24 de abril, quinta-feira, será o lançamento da publicação “e: persuasões íntimas: e falar entre si: e uma liga de sólido e de frágil: e”, que é resultado do trabalho que desenvolvemos no último semestre de 2024.
“Estão contidas neste livro obras criadas a partir de diversas materialidades, como gravuras, carimbos, aquarelas, cianotipia, colagem, escrita, fotografia, entre outros, para tratar da relação entre sujeito-mundo a partir de uma referência primordial, ‘A teoria da bolsa de ficção’ da escritora Ursula K. Le Guin”, explica a editora e coordenadora do grupo.
Além das páginas com três colagens que desenvolvi, o livro contém obras de outros 38 artistas, impressas nas 192 páginas.
O lançamento será a partir das 19h, na Fundação Cultural BADESC, em Florianópolis. A entrada é gratuita.
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e: persuasões íntimas: e falar entre si: e uma liga de sólido e de frágil: e Edição, curadoria e projeto editorial: Kamilla Nunes Cais Editora 192 páginas Exemplares à venda no lançamento (tiragem limitada)
Comecei a fuçar a internet no último ano do colégio. Era 1995 e a “rede mundial de computadores”, como brincamos nos dias de hoje, era tudo mato.
Comecei meu blog no início dos 2000 e com ele conheci muita gente legal. Várias delas são grande amigos que fazem parte da minha vida até hoje.
Na época, tinha leitores fiéis que participavam do assunto com seus comentários.
Tinha tretas também porque a internet reinventou a treta. Mal sabíamos que isso ia piorar muito no futuro.
Mas escrevo esse post para contar que eu tinha um leitor ilustre e ele contribuía com comentários generosos. Eu era uma menina de vinte e poucos anos escrevendo bobagens diárias e ele um jornalista conhecido aqui na ilha.
Mais tarde, pude conhecer pessoalmente o jornalista Carlos Damião, por quem eu nutri admiração e respeito.
Encontrávamos algumas vezes em eventos na cidade.
Da última vez que o vi, ele estava com problema de visão e andava devagar pelo centro da cidade. Mesmo assim me reconheceu e me chamou. Ele gostava de circular pelas ruas do centro e sempre estava atento aos acontecimentos da cidade e escrevia sobre isso.
Naquele dia entramos juntos num comitê atrás de adesivos, pois era época de campanha presidencial.
Ele contou dos novos projetos. Estava aprendendo como gravar e editar seu próprio podcast, que seria lançado logo mais.
Ainda não sabíamos que esses projetos nunca sairiam do papel. Pouco tempo depois soube de sua morte, sozinho, em casa.
Esse é um post de agradecimento e em memória do jornalista Carlos Damião.
Voltaria pra casa, depois de uma viagem à Minas com a minha família.
Me avisaram em cima da hora o dia do retorno e eu teria que arrumar a mala correndo, na noite da véspera.
Já chateada por ter sido avisada em cima da hora, fui enfim separar tudo. Alguns amigos me acompanhavam.
Só daí me dei conta da quantidade de coisas que levei. Entre muitas roupas inúteis, havia um par de luvas de quando eu era criança. Nem cabiam nas minhas mãos adultas de hoje. Os amigos riram.
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Enquanto eu corria na esteira nesta manhã, pensava sobre meu sonho.
Pensava sobre a quantidade de coisas inúteis que levo pra lá e pra cá nessa vida. Coisas que já não me servem mais. Coisas que não me fazem mais sentido algum.
Socorro Acioli escreveu em seu livro Oração para Desaparecer: “Estar vivo é ser palavra na boca de alguém. Não lembrar delas me condenou ao abismo, não saber os nomes das pessoas, do meu lugar, a narrativa da minha vida, tudo o que somos é história e história se conta com palavras. Por isso bastou um bilhete. Lembrei-me da missa: ‘Mas dizei uma palavra e serei salvo’. Fui salva por apenas duas, o nome da cidade de onde vim e o meu nome.”
Sou a Carol Grilo. Não quero falar de onde vim, mas do bairro onde moro. Não sou nativa do Córrego Grande, nem de Florianópolis. Vivo no bairro desde a minha pré-adolescência, em 1990.
Aqui, me tornei adulta e morei em três lares diferentes. Até então.
Nesses 35 anos, acompanhei as transformações deste pedaço da cidade. Vi comércios abrirem e fecharem, assisti à demolição de casas para darem lugar a edifícios, vi uma fazenda inteira dar lugar a condomínios e escutei a motoserra ceifando garapuvus para ser construído um loteamento no alto do morro.
No meu imaginário, hoje o bairro se divide em dois.
Um bairro recente, com prédios mais altos, com uma vizinhança completamente alheia à história local. Um lugar com petshops e markets, com padarias caras e muitas salas comerciais para alugar.
O bairro que me interessa é o segundo. O Córrego Grande que ainda me faz lembrar do tempo em que me mudei pra cá. Com as casas que resistem, com as árvores e jardins que permanecem enraizados, com a vizinhança que se conhece, que se encontra na feira, no posto de saúde e nos centros comunitários.
Nesta semana, estava no sertão do Córrego Grande conversando com outras moradoras do bairro e muitas memórias voltaram vivas à minha mente através do que cada uma relembrou.
Voltei pensativa sobre o que é território e o que ele significa pra gente.
Não pude deixar de pensar nas pessoas que vivem na Palestina, retratadas no documentário Sem chão (No other land ), dirigido por Yuval Abraham, Basel Adra e Hamdan Ballal.
Me imaginei perdendo as casas onde vivemos, as escolas onde estudamos, sem chance de as salvarmos.
Onde o que resta é reconstruirmos tudo com as próprias mãos.
Essa reconstrução só acontece porque há uma comunidade unida pelos mesmos valores e objetivos.
Em busca de uma comunidade, é que decidi participar de um grupo local e criar novos laços nesse território próximo.
Voltei a circular pelas ruelas do Jardim Guarani, a escutar as crianças na hora do recreio na creche municipal ou a cruzar sempre com o mesmo cachorro vizinho.
Em alguns de meus trabalhos abordo o tema silêncio.
Ora sou silenciada como mulher.
Ora procuro o meu próprio silêncio.
E foi desse silêncio, o que mais me interessa, que fui atrás no carnaval.
Refugiei-me por alguns dias na casa de amigos nas montanhas.
Foi lá que pisei na grama, nadei no açude, fiz as refeições mais deliciosas numa mesa cercada de araucárias. Foi lá que vi o tempo passar devagar, observei a brisa balançando a cortina na janela e observei a lua nova no céu já quase de noite. Foi lá também que convivi com três éguas e dois pôneis queridos: a Jasmine e o pequeno Pixel.
Do amanhecer ao anoitecer, lá fora era silêncio.
Dentro de casa, conversas boas e tempo para colocar o pensamento em ordem.
Sempre brinco que trocaria facilmente a invenção da internet pelos anos de Mtv.
A emissora faz parte da minha juventude e de tudo que me formou musicalmente.
Lembro das férias escolares em que passava horas acordada madrugada adentro para conseguir assistir aos melhores videoclipes.
Durante as aulas, aproveitava o intervalo entre o almoço e a volta para o colégio, para conseguir ver CEP MTV com o Thunderbird de apresentador.
Conhecia bandas através de Fábio Massari nos programas Lado B e Manifesto.
Gravava clipes em fitas VHS, o que resultou numa grande coleção, descartada muitos anos depois.
Naquela época eu era adolescente, e todo mundo queria ser VJ ou ter ganhado a promoção para viajar até Seattle com o Gastão Moreira.
Nos idos de 1993, o assunto só era esse: bandas, o álbum que acabou de sair, o filme que estreou no cinema. Ficávamos informados através da emissora.
Nos anos 2000, ao meu ver, a MTV degringolou de vez. Os programas de auditórios e reality shows foram a maneira de aumentar a audiência, mas me fizeram perder o interesse pelo canal.
Anos mais tarde, a falência da editora Abril, dona da MTV Brasil, decretou enfim a sua morte.
Soube que o acervo ficou abandonado por anos no saudoso prédio da avenida Alfonso Bovero.
Até que Gastão Moreira, em seu canal Kazagastão, descobriu que o acervo está guardado e muito bem cuidado.
Aliás, vale muito a pena assistir à série de vídeos que o Gastão tem feito, principalmente para quem viveu aquela época.
Esses vídeos são a única comprovação que a minha adolescência, sem a internet, foi muito legal 🙂
Trabalho com colagem há algum tempo. Se for contar a época em que recortava, colava e montava universos criados em capas de cadernos e páginas de agenda, faz mais tempo ainda.
Comecei a levar essa técnica para meu processo criativo quando fiz algumas oficinas com a colagista Pati Peccin, também aqui de Florianópolis.
Meu último trabalho com colagem partiu de um exercício em que brinquei com a ligação entre letras (a fonte escolhida foi Helvetica) e dei formas inusitadas e ilegíveis a elas.
Essas “palavras-figuras” foram coladas em folhas caídas de árvores em parques, praças e canteiros e redistribuídas nos mesmo locais, a fim de que alguém as achasse por aí.
Continuei essa investigação e criei uma pequena publicação manual e caseira, utilizando o formato de encadernação concertina (uma espécie de sanfona ao abrir), onde, mais uma vez, essas “palavras” tornaram-se a ilustração do livreto, juntamente com outras imagens.
A partir daí, criei a série de colagens Indecifráveis. São imagens fortes buscadas no fotojornalismo, acompanhadas de padrões criados com a junção dessas letras. Essa série é composta de três colagens principais.
A novidade é que elas farão parte de uma publicação coletiva, resultado dos trabalhos desenvolvidos com o grupo Impossibilidade do esgotamento. Será lançado em abril deste ano.